Ele [o Fogo] amou o Filho de Eva como jamais amou ninguém e cuidou dele, ensinando-o inclusive a arte de manejar o calor em proveito próprio. Mas conforme advertido pela Terra-Mãe, Eva era feita de elementos frágeis e também os filhos que gerara herdaram muitas de suas fraquezas, inclusive a de não suportar as grandes chamas, porque sua composição feita de barro, água e ar era extremamente sensível ao calor intenso.
Assim, o Fogo obrigou-se a controlar o próprio temperamento explosivo para poupar a saúde da família. E como Eva perdera os dois filhos do primeiro casamento – um morto e o outro banido – tiveram filhos atrás de filhos, porque estava sempre solícita à paixão incendiária do atual marido...
A Terra-Mãe nunca aprovou de fato aquela união porque suas diferenças pessoais com Eva não poderiam ser superadas através de um simples casamento – o que fora, aliás, um golpe muito baixo, principalmente porque Eva demonstrava uma melhor habilidade em controlar o gênio imprevisível do filho. Mas ficou um tanto aliviada com a aparente serenidade conquistada pelo Fogo, embora atribuísse aquela súbita mudança de comportamento exclusivamente à chegada da maturidade.
Estranhamente, nos quatro cantos do universo nasceram bonecos de barro como os filhos de Eva cujo pai visivelmente não era o Fogo (ele ficou uma fera quando descobriu). Chamavam-se herdeiros da Água e do Ar – e coincidentemente povoaram as terras doadas a um e ao outro.
Todos marcaram os descendentes à própria maneira a fim de resguardar as terras recebidas. Milhares de Eras se passaram até que um dia de muita alegria, na terra do Norte, o Fogo resolveu contar aos filhos de Eva um pouco de seu passado. Narrou orgulhosamente como obteve as terras em que viviam e confessou seu desejo reprimido de possuir todo o território agora repartido entre os irmãos.
Ora, a principal característica dos filhos de Eva era sem dúvida a mania de disputar trivialidades entre si. Eram de fato muitíssimo competitivos e buscavam reconhecimento por cada coisa simples que faziam, ansiando destaque por isso. Não se preocupavam muito com futilidades como benevolência e caráter porque afinal eram temas muito subjetivos, de difícil avaliação, de modo que não havia razão para perderem tempo com algo que não lhes rendesse evidência.
Assim, a narrativa do Fogo despertou interesse nos habitantes do Norte pelos antigos projetos do pai: resolveram secretamente presenteá-lo com o território de que tanto desejava.
Mas os tais Humanos eram feitos de porções iguais de terra, água e ar, portanto, possuidores de poder e força idênticos, de modo que fisicamente nenhum poderia reinar sobre o outro. Nesse caso, foi o domínio sobre o fogo que fez toda a diferença para os habitantes do Norte. Forjaram espadas e escudos, armas, canhões e conseguiram uma boa vantagem sobre os moradores do extremo-Oeste e os do Centro. Os do extremo-Leste foram rápidos em adquirir a técnica do manejo das chamas e conseguiram expulsar os invasores de suas terras. Foi o único lugar que escapou ao subjugo da dominação.
A sensação de guerra despertou os instintos primitivos do Fogo e esquecendo-se de que precisava da energia de seu irmão mais velho para sobreviver (um passado muito distante sobre o qual não se reflete sempre tende ao esquecimento) novamente atacou-o, só que dessa vez para roubar-lhe as terras. Grandes perdas sobrevieram a ambos os lados, mas o Ar, subjugado e enfraquecido, levou a pior.
A Água comoveu-se diante do destino cruel sob o qual o irmão sucumbia. Uniu suas forças às dele e enviou uma mensagem aos filhos de Eva de todos os lugares para se unirem em resistência à ocupação dos habitantes do norte. Não foi o suficiente.
O Fogo excedeu-se na busca ao poder e se esqueceu da frágil composição da própria família. Quando os primeiros filhos pereceram às chamas tampouco se deixou intimidar. A essa altura já tinha tantos herdeiros que perder alguns deles em prol de todas as terras do planeta parecia um preço justo. Então os habitantes do Norte perceberam o descaso com que o pai lhes tratava e se indignaram. O Fogo, sucumbindo à própria ambição, aspirou quase toda a energia do irmão transformando-se em uma enorme bola de chamas. O Ar perdeu os sentidos.
A Água chorou dias a fio. Sua tristeza era tamanha que várias nuvens-olhos carregadas de lágrimas brotaram do céu e cobriram toda a terra. Choveu incessantemente. Era um pranto tão singelo, tão sofrido, que até mesmo o Fogo se sensibilizou, suas chamas se enfraqueceram e o Ar recuperou a consciência. O Fogo foi banido do lar da Terra-Mãe e se exilou no céu, acima das nuvens-olhos, para não correr o risco de se extinguir para sempre. Foi o melhor para todos.
Durante o dia a bola de Fogo zelava e aquecia seus filhos à distância. À noite, como punição, se recolhia para pensar nos danos que provocou. É claro que o exílio não agradou nenhum pouco à Eva, que jurou fazer de tudo para ter seu companheiro de volta.
Foi o início dos boatos.
Em muitos cantos do planeta repetiu-se a história de que Eva fora vista, na calada da noite, remexendo algo suspeito no solo. Uns achavam que era veneno para matar a Terra-Mãe, outros, que era uma arma secreta para destruir o planeta, outros ainda, achavam que era tesouro roubado do paraíso. Não foi preciso decorrer muito tempo para que ninguém mais soubesse ao certo em que ponto do planeta teria sido enterrada a tal coisa. Alguns até fizeram mapas e cruzaram oceanos para procurarem o suposto tesouro. Não encontraram nada, mas ficaram ricos vendendo os mapas.
Havia também os sonhadores, desejando que Eva tivesse plantado uma semente para a paz. Alguns herdeiros, acreditando nisso, vestiram seus melhores ternos e foram às ruas dizer em altos brados que não tardaria para que a discórdia entre os filhos de Eva chegasse ao fim. Conquistaram muitos adeptos para a causa. Fizeram vigílias e procissões. Cantam à paz, rezaram nas praças mas nada adiantou. Não tinha importância: eles cultivavam a esperança e a esperança é uma semente que sempre se renova.
Os sonhadores acreditavam que a Terra-Mãe tinha se precavido às fraquezas dos filhos de Eva, a tal semente seria uma prova disso. Então quando a Terra-Mãe estivesse pronta, nasceria do mesmo povo três legítimos herdeiros dos filhos da Terra-Mãe, fadados a descobrir um segredo que poria de uma vez por todas um ponto final na discórdia entre os filhos e os filhos de seus filhos. Com o passar do tempo aquela vital certeza foi se esvaindo. Começaram a duvidar que a tal árvore tivesse realmente sido plantada – a Terra-Mãe fizera questão de espalhar aos quatro cantos do mundo que tudo não passava de invencionice de Eva – porque a Terra-Mãe ainda se ressentia pela nora, acreditava – precisava acreditar – que sua desgraça familiar havia sido provocada por Eva e seu charme fajuto.
Foram tantas recontagens, tantas adaptações, que a história virou um mero boato. Somente uma pessoa sabia a verdade mas ninguém sabia como chegar até ela. O único jeito seria esperar – talvez milhares de anos – até que alguém seguisse os passos de Eva e descobrisse o que estaria escondido no chão. Enquanto esperavam, as terras continuaram repartidas e marcadas para sempre pela co-existência (nem sempre pacífica) de três raças de filhos de Eva, que vez ou outra se lembravam do desejo do Fogo de dizimarem umas às outras...
04/01/2008 - 29/09/2008