terça-feira, 1 de janeiro de 2008

O homem por inteiro - continuação

Viveram segregados e felizes, compartilhando uma vida dividida, até que as meninas tornaram-se adolescentes.

Teria sido a mesma indiferença de sempre não fossem as escolhas afetivas das garotas. Aparecida enamorou-se a um rapaz íntegro, trabalhador e para o azar de todos, pobre. Seu nome era Augusto. Ele a amava perdidamente. Bueno apoiava a união desde que o rapaz investisse em uma profissão rentável.

Arminda era contra. Bradava aos quatro ventos que o rapaz era um golpista, um morto-de-fome, que nunca daria sua bênção à união, nunca permitiria que eles se casassem. Bueno interveio, tiveram uma briga barulhenta. Arminda ofereceu dinheiro ao tal pretendente e contratou garotas de programa para seduzi-lo.

Mas nada o intimidava. Quanto mais ela tentava separar mais o casal se unia. Prometeram um ao outro o amor eterno. Ele foi proibido de entrar na casa, Aparecida passou a fugir para encontrá-lo.

Um dia Arminda prendeu as filhas no quarto: Aparecida para que não fosse atrás do namorado e Patrícia para que não virasse menina-de-recados.

A situação começou a perder o controle. O marido exigiu que Arminda saísse de vez de casa, que deixasse as meninas em paz. Ela o acusou de não se importar com o futuro das filhas. Pela primeira vez se agrediram fisicamente. Foi um intensa gritaria. As quatros babás também foram mantidas presas. Não que as meninas ainda demandassem tamanho cuidado, mas a ligação afetiva delas com Patrícia e Aparecida era tão profunda que Bueno achou por bem mantê-las a serviço.

Dentro do quarto as meninas choravam. Bueno arrombou a porta. Ele estava exaltado como nunca o viram antes. A mãe bradava injúrias, alucinada.

Aparecida disse ao pai que não suportaria mais viver assim. Deu-lhe um beijo, às lágrimas, outro nas babás, demorou-se abraçando Patrícia e desceu as escadas correndo. A mãe quis impedir que partisse. Puxou-a de volta pelos cabelos. Patrícia quis ajudar e acabou levando um tapa no rosto. Aparecida urrou horrorizada. Prometera a si mesma que protegeria a irmã das loucuras da mãe. Bueno interferiu, conseguiu imobilizar a mulher. A babá ligou para a polícia.

Aparecida saiu de casa levando apenas a roupa do corpo. Era uma sensação estranha, de medo e liberdade. Iria embora para sempre, ser feliz com o homem que amava. Patrícia quis acompanhá-la. O pai não permitiu: era nova demais.

Arminda foi levada para a delegacia e ficou detida. Foi assistida por defensores públicos. Bueno fez questão de entregá-la à própria sorte. Queria que a esposa apodrecesse na prisão.

Mas não foi bem assim. Eram de uma família distinta na cidade. Foi um caso de repercussão pública. Arminda era réu primário, teve a pena reduzida por bom comportamento e não durou dois anos na cadeia.

Quando da sua liberdade, ninguém foi buscá-la. Ela não tinha dinheiro nem para o táxi nem para o ônibus. Ouviu desaforos no trajeto, a cidade inteira havia condenado sua atitude. Foi a pé para casa, andou por quase três horas seguidas.

E qual não foi sua surpresa ao entrar em casa, descobrir que Bueno não estava e se deparar com Patrícia na sala aos amassos com um homem, provavelmente seu namorado, aparentando mais pobreza que o pretendente de Aparecida. E negro, mais negro que a mãe de Arminda.

Para completar, Patrícia anunciou-se grávida. Foi a gota d'água! Arminda exigiu que algo fosse feito, queria impedir a filha de levar a gravidez adiante.

– O maior desgosto da minha vida seria ter um parente negro!

E insistiu na idéia:

– Para que trazer mais uma criança ao mundo? Filhos só dão desgosto! Vejam vocês duas! Estragaram minha felicidade com o pai de vocês! Nós éramos felizes até vocês nascerem! Ser mãe é um fardo mais pesado que a mulher pode carregar!

– Como ousa falar de maternidade? Sou órfã desde o dia em que me concebeu!

– Não vou admitir esse negro na minha casa! Ponha-se daqui para fora!

– A senhora é uma porca, preconceituosa! Vai voltar para a cadeia por crime de racismo!

– Ponha-se daqui para fora!

– Essa casa não é sua! É do meu pai!

– Não abrigamos mendigos!

– Escute aqui! Você não tem o direito...

– CHEGA! – gritou o namorado de Patrícia – JÁ OUVI O SUFICIENTE!

Patrícia observava o namorado com o coração comprimido, tinha medo do que ele poderia dizê-la, tinha medo de que ele perdesse a cabeça. As lágrimas deslizavam com a força de uma correnteza.

Patrícia tapou os ouvidos com as mãos. Seu namorado gesticulava indignado. Ela não queria ouvir. Sua mãe havia estragado tudo de novo. Patrícia recostou-se à parede. Não estava se sentindo muito bem. O canto dos olhos ficou escurecido, as imagens começaram a rodar. O rosto empalideceu-se. Estava prestes a desmaiar.

Patrícia tentou se concentrar no presente. Sentiu quando apertaram seu braço com violência. Tinha mera consciência de que sua mãe estava gritando e balançando seu corpo. Por mais que tentasse não conseguia reter as palavras que ela dizia. Então aquilo que Patrícia mais temia no mundo aconteceu: a dor mais alucinante que uma mulher pode sentir contraiu todo o seu abdômen. A contração em si não parecia nada diante da sensação de dor, de perda, que Patrícia experimentou. Caiu de joelhos no chão. Era como se seus músculos tivessem ganhado vida. Era como se suas costas estivessem sendo abertas a machadadas.

Quando Arminda entendeu o que estava acontecendo parou, por uns instantes, de falar e sorriu.

– Você não passa de uma menina mimada! Pelo menos a sua irmã tinha caráter! Você é uma fraca, uma tola, que não consegue sequer se defender na ausência do seu pai!

Era demais. O namorado de Patrícia acertou um soco no rosto de Arminda.

Com o nariz quebrado, a boca sangrando e dois dentes a menos, Arminda sorriu maliciosamente:

– Isso não muda nada! Patrícia continua sendo a mesma frágil idiota de sempre! – um brilho doentio cintilava em seus olhos – Sabe o que aconteceria se seu pai... – mas não pôde continuar a frase. Justo naquele instante Aparecida entrou apressada atraída pelos gritos. Estava acompanhada do homem pelo qual um dia fugira de casa. No anelar esquerdo brilhava uma aliança barata e simples. O ventre avantajado e redondo indicava uma gestação meses mais avançada: estava grávida também.

Aquela visita estava marcada há dois dias, desde que Patrícia ligara fazendo mistério a respeito de uma notícia muito boa. Seria também uma surpresa a Bueno. Pela primeira vez Aparecida estava retornando. Falava com o pai, às vezes, por telefone, mas nunca lhe dera o endereço de onde estava morando. Tinha muito receio de que a mãe, ao sair da prisão, fosse atrás dela. Não sabia a data de libertação de Arminda. Adorava pensar que a pena seria perpétua. Mas todas as expectativas relativas àquela visita se mostraram infrutíferas. Por um mau gosto do destino a data do encontro coincidiu com a liberdade da mãe, a quem Aparecida pretendia nunca mais encontrar.

O pai não estava em casa. Num canto Patrícia se contorcia e chorava com o namorado a ampará-la. No outro, Arminda gargalhava dementemente, o rosto completamente desfigurado.

– O que pensa que está fazendo? – Aparecida berrou enquanto acudia a irmã mais nova.

Aparecida chamou um táxi. Os homens ajudaram a carregar Patrícia até o carro. No instante em que o motorista bateu a porta do veículo Aparecida virou o pescoço para trás. Aquela imagem martelou para sempre em sua cabeça, a casa diminuindo à medida em que o veículo seguia em frente até desaparecer de vista quando o carro fez a primeira curva.

Patrícia foi imediatamente medicada, ficou quinze dias em observação no hospital. Quando de alta, Patrícia e o namorado se acomodaram na casa de Aparecida, que estava vivendo em um bairro excessivamente modesto de Casemiro de Abreu. A casa era minúscula, não muito confortável, móveis e eletrodomésticos de péssima qualidade. Mas Patrícia não se lembrava de algum dia ter visto a irmã mais feliz.

Augusto passava quase todo o dia fora. Tinha dois empregos e ainda fazia pequenos trabalhos aos finais de semana. Aparecida o ajudava comercializando peças de artesanato na feira do centro. Augusto levou o marido de Patrícia ao seu trabalho e conseguiu uma vaga para ele. Sempre que tinha tempo Augusto visitava os sebos da cidade. Sempre que podia comprava livros baratos para ele e o marido de Patrícia, por incentivo seu, estudarem à noite.

Inscreveram-se em um centro público de graduação à distância. Foram ambos aprovados em cursos distintos. Dispensaram os pequenos trabalhos em prol dos novos aprendizados. A situação financeira da casa não era nada boa. Os salários eram baixos, mal davam para cobrir os custos mensais.

Mas o horizonte das irmãs era promissor. Seus maridos eram os melhores alunos das respectivas disciplinas. A promoção para empregos mais rentáveis parecia uma mera questão de tempo...


****

Bueno nunca soube o que realmente acontecera naquele dia. Ao chegar em casa encontrou a esposa recém-libertada, o rosto inchado e sangrando, dizendo ter apanhado de um exaltado no caminho. Fez cara de inocente, perguntou pelas filhas, disse-lhe arrependida, com saudades da família, pronta para recomeçar. Bueno olhou-a desconfiado. Logo soube que a filha grávida não moraria mais ali.

Vasculhou a casa em busca de possíveis bilhetes. Patrícia não poderia ter partido sem se despedir dele. Interrogou os empregados em fila. Ninguém sabia explicar o que havia acontecido. O porteiro mencionou a rápida visita de Aparecida e Patrícia sendo carregada quase inconsciente até o táxi.

Bueno não conseguiu saber de mais nada. Desconfiou da versão da esposa. Arminda defendeu-se:

– Está bem, está bem! Se você insiste, contarei a verdade... Quando entrei na sala Patrícia e o namorado estavam discutindo. Pelo que entendi, ele insistia em não assumir a paternidade da criança. Eu, é claro, defendi minha filha. Mas aquele estúpido começou a se exaltar e me agrediu. Patrícia ficou nervosa, você sabe como os primeiros meses de gravidez são delicados... Então Aparecida chegou! Ela fez a cabeça de Patrícia para levá-la embora. Eu tentei falar com ela, Bueno. Eu clamei pelo perdão! Aparecida ainda estava muito magoada comigo... Com toda razão, é claro! Todos esses anos tenho sido uma péssima mãe. Não a culpo por isso. Mas eu tentei reparar meu erro! Fiz o que estava ao meu alcance... Tentei alertá-las. Elas não quiseram me ouvir!

Bueno não disse nada. Dispensou os empregados e passou a noite esperando algum telefonema que indicasse o paradeiro de suas filhas, que explicasse porque Patrícia havia partido sem se despedir. Por que teria feito isso com ele? Teria sido um pai tão mau assim?

No dia seguinte vagou pelas ruas em busca de notícias mas foi inútil. Era muito difícil rastrear um táxi comum numa cidade onde todos os táxis são iguais. Bueno espalhou cartazes pelas redondezas com fotos, telefones e recompensas mas ninguém foi capaz de oferecer uma pista sequer.

Bueno se convenceu de que Arminda falara a verdade e a aceitou de volta à casa. Mera hóspede. Ele nunca mais tocou seu corpo nem mesmo para um afago.

Com o tempo tornou-se um homem amargurado embora jamais tenha desistido de reencontrar as filhas.

À noite, na cama, ele a mulher rezavam em silêncio. Ele, para que as filhas estivessem bem. Ela, para que nunca mais voltassem. Arminda agradecia pela nova oportunidade de ser feliz. Tinha esperança de que na ausência das duas Bueno se esquecesse das buscas e voltasse a amá-la como antes.

O que Arminda não sabia (e daria para escrever um livro só com as coisas desconhecidas por ela) é que desde que as filhas haviam nascido o coração de Bueno fora repartido em três partes não idênticas. E para alcançá-lo nesse estágio seria necessário muito mais do que promessas de prazer e carinho intensos. Seria necessário um ato quase cirúrgico de reaproximar essas partes, que andavam embaralhadas.

Por que Bueno jamais voltaria a ser de Arminda como antes. Ele jamais voltaria a ser um homem por inteiro enquanto seu coração continuasse dividido.
Comentários
2 Comentários

2 comentários :

luis bueno disse...

Ellen, primeiramente, gostaria de agradecer-lhe a confiança em mim depositada. Senti-me mesmo privilegiado. Bem, na visão de um auto-didata sem base acadêmica, vejo seu conto bastante envolvente, com ritmo, daqueles que começamos e, quando percebemos, já terminamos com aquele gostinho de “quero mais”. É emocionante, pois fala de um assunto velado, preconceito, auto-preconceito e a tragédia que resulta das visões ignorantes. A trama é coerente com o perfil psicológico das personagens. Mas, como não poderia deixar de ser, em tramas desse tipo os leitores esperam um desfecho mais “sangrento”...porém, sua decisão de fazer com que o leitor imagine o destino das personagens (no caso, as filhas do casal) foi acertada: o gostinho de “quero mais” ficou bem mais aguçado. Bem, acho que é isso. Comente meu comentário (isso ta parecendo debate eleitoral)...rsrsrs

luis bueno disse...

http://carlosbueno.zip.net

Sejam bem-vindos ao facetas!

................TODOS OS TEXTOS DESSE BLOG SÃO AUTORAIS............

Resolvi utilizar este espaço para divulgação de trechos de alguns trabalhos meus... Espero que vocês apreciem. Críticas e comentários serão muito bem-vindos, sobretudo críticas!

Se você já leu o texto acima não fique tímido: fique à vontade para comentar em outras postagens!