sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Eis aí meu grande orgulho




O primeiro, de alguns que vieram depois dele e muitos que ainda virão...


Tarde da noite - Capítulo 2

Eram quase duas horas da manhã e o sono parecia ter esquecido de visitar Débora. Ela estava deitada, de olhos abertos e em silêncio, contemplando o teto do imenso quarto em que dormia. Embora soubesse que suas aulas iniciariam na manhã seguinte, Debby, como também era chamada, não conseguia afastar aquele turbilhão de pensamentos que agitavam a sua mente.

A questão era bem simples, embora para Débora parecesse a pior coisa do mundo. Ao final do ano letivo anterior, seu pai, Augusto Duarte de Assis – um homem muito rico, dono de uma rede de negócios e ações de diversas empresas – decidiu matriculá-la em uma nova escola, o Colégio de Aplicação Curumim Dourado, uma escola de renome, conhecida por formar os filhos de uma elite selecionada.

Ali, deitada, enquanto pensava em como seria a sua vida este ano, Débora sequer poderia imaginar o que realmente lhe aconteceria. Ela não fazia a mínima questão de disfarçar seu aborrecimento com seu pai por tê-la mudado de Colégio. Era ótima aluna, inteligente e esforçada mas Augusto havia chegado à conclusão de que chegara a hora de receber uma educação de primeira qualidade.

Todo o seu primário Debby havia estudado em uma escola pequena, de bairro, e crescido com as crianças da redondeza. Não que Debby não estivesse fascinada pela idéia de estudar no Curumim. Por muitas vezes ela mesma havia se imaginado atravessando os portões gradeados daquela escola que era linda, grande, bem equipada e oferecia a melhor educação do país. Ouvira muitas histórias fantásticas sobre o Colégio, porém as mesmas histórias que em outros momentos haviam despertado nela o desejo de estudar ali agora lhe pareciam totalmente sem-graça.

O problema?

Tudo que o Curumim tinha de fantástico também tinha de caro e isso significava que os dois grandes amigos de Debby, Maria Lúcia (a Malu) e Felipe, jamais teriam como pagar tal mensalidade.

Em outras palavras: às sete e meia de segunda-feira Débora sofreria toda a angústia de enfrentar sozinha a adaptação a uma escola totalmente nova e isso não lhe parecia muito agradável.

Embora jamais admitisse, Débora estava se sentindo desprotegida tendo que encarar um desafio sem seus amigos e basicamente este era o ponto de discordância da menina com seu pai. Malu e Felipe não eram exatamente pobres mas também suas famílias não eram ricas a ponto de poderem pagar uma mensalidade tão vultuosa.

Débora, que depois descobriu estar errada, acreditava que todos os colégios eram iguais e não queria estudar onde Maria Lúcia e Felipe não estivessem. Augusto, por sua vez, havia batido o martelo e contra todo e qualquer argumento apresentado pela filha manteve a decisão de transferí-la.

Um misto de expectativa e decepção atravessava o peito da menina e julgando pela insônia que estava sofrendo podia-se imaginar o quanto estava insegura em relação às aulas que assistiria.

Sentia-se derrotada. Questionava-se se deveria ter insistido mais, embora já soubesse de antemão que havia dedicado todas as suas forças em convencer Augusto a desistir da transferência. Fizera o que pôde. E sentiu uma pontada de raiva do pai por não tê-la escutado.


Por que tinha que ser tão cabeça-dura?

Augusto costumava levar a opinião da filha em grande consideração antes de tomar uma decisão que a afetasse porém desta vez não cedera. Não que ele fizesse as vontades da menina. É preciso esclarecer aqui que Débora não era uma menina mimada, Augusto sempre conversava com a filha e algumas decisões simples tomavam em conjunto mesmo, ou, pelo menos, isso funcionava para a grande maioria das coisas.

Não se sabe se era a proximidade da adolescência que estava deixando Débora um tanto “rebelde” ou se era Augusto que havia mudado. Mas o fato é que Augusto queria que Debby estudasse no Curumim Dourado e fez valer a sua vontade.

E era como jogar em um jogo perdido. Nada do que a menina dissesse ou fizesse não poderia alterar o resultado. Débora se sentia bastante infeliz para conseguir dormir. E para completar, Augusto, que mantinha o hábito de jantar todas as noites com a filha, não aparecera a tempo e esta noite ela jantara sozinha. Era a sua última chance de fazê-lo desistir...

O pai de Débora, atualmente um empresário muito bem-sucedido, não era rico de berço: melhorou a condição financeira por seus próprios méritos. Suas atenções estavam quase sempre voltadas para o trabalho e foi através dele que prosperou até juntar toda a fortuna de que atualmente dispunha. Augusto invariavelmente tinha um dia cheio de negócios a tratar e independente de suas obrigações profissionais fazia questão de dedicar as primeiras horas da noite à filha.

Débora já estava tão acostumada a recebê-lo em casa ao fim da tarde que vez ou outra quando Augusto se atrasava ela deixava a mesa aborrecida e seguia para o seu quarto sem falar com mais ninguém. Essa noite ela havia se deitado às oito e meia e já estava ficando entediada pela falta de sono. Ligou a televisão que ficava no vão central do armário embutido e ficou trocando os canais a esmo. Tentou assistir a alguma programação e logo desistiu porque não estava passando nada que valesse o esforço. Como já estava cansada de esperar pelo sono resolveu descer até a cozinha para comer alguma coisa ou quem sabe beber um copo de leite.

Debby saiu de seu quarto e desceu lentamente as longas escadas de mármore escuro, com corrimão de prata. Quando alcançou pouco mais que o meio da escada ouviu duas vozes vindas do andar de baixo. Sem fazer barulho chegou até a sala e reparou que as vozes, já familiares, estavam saindo da biblioteca:

– ... E foi por isso que eu fui até lá... – disse uma voz grave de homem – Ela não estava querendo aceitar... eu tinha que fazer algo...

– O Senhor agiu muito bem! – falou uma voz tenra, feminina.

– É, acho que foi – disse o homem hesitante.

– Então por que essa expressão preocupada?

– Fico me perguntando se fiz a coisa certa... Gostaria de tê-la trazido para cá... Eu gostaria de ter participado mais...

Débora espiou pelo vidro da porta de madeira que separava a sala da biblioteca. Lá dentro estavam Augusto e Maria. Augusto estava sentado em sua cadeira reclinável e Maria estava de pé, com o quadril apoiado na mesa, de frente para ele. A menina estranhou que os dois ainda estivessem acordados àquela hora da madrugada e até sentiu-se tentada entrar no escritório para falar com o pai, quem sabe insistir mais um pouco sobre a transferência... Mas desistiu logo da idéia, Augusto parecia agitado e Debby sabia que não era recomendado teimar com ele nessas circunstâncias.

A rotina de empresário às vezes era estressante. Invariavelmente Augusto enfrentava problemas nos negócios mas era raro ele permitir que isso alterasse seu humor em casa. Somente algo realmente grave o deixaria tão agitado.

Os dois ficaram em silêncio por alguns instantes, então Maria disse:

– Talvez ela ainda não esteja pronta para conviver com suas memórias, Augusto! O que não deixa de ser uma pena. Um pouco de companhia não faria mal a ninguém.

Augusto fez uma longa pausa em que parecia estar considerando a questão.

– Dê um tempo para ela amadurecer a idéia – continuou Maria – As coisas aconteceram rápido demais para todo mundo. É normal que ela esteja assustada, sem contar aquele probleminha com a mãe dela... Patrícia sempre foi muito independente, tá lembrado? Vir para esta casa, na cabeça dela, pode significar depender de você. Vai por mim, se ela foi capaz de enfrentar a mãe daquele jeito...

– Ainda assim eu gostaria de participar mais. Se Patrícia não parecesse tão obstinada! Augusto sorriu cheio de significação e Maria retribuiu ao afeto. – Isso me lembra alguém – disse ele – até parece que Patrícia é sua irmã!

Por um breve instante os olhos de Maria se perderam em algum lugar em suas lembranças e depois, ainda sorrindo, ela disse:

– Vão morar perto, pelo menos? – Não daqui. Ela fez questão de escolher o imóvel pessoalmente para evitar que eu cometesse excessos. Dá para acreditar?

– Típico! E a mobília?

– O que acha? Não consegui muita coisa. Disse que era assunto de mulher, se sentiria melhor se comprasse sozinha... Ela ameaçou pôr tudo à venda se eu me intrometesse na decoração. E não duvido que ela cumprisse a promessa, Maria. Estou pra ver uma mulher mais vigorosa. Acho que ganha até de você – disse Augusto sorrindo.

– E a menina? Quando o senhor pretende contá-la? Quanto antes melhor! – Maria tentou, sem sucesso, imprimir desinteresse à fala.

Ele suspirou profundamente.

– Resgatar isso tudo agora não vai ser fácil.

Augusto se mexeu desconfortavelmente na cadeira.

– Teremos tempo para isso... – respondeu evasivamente, e depois, como quem não queria prolongar o assunto perguntou – Debby ainda estava com a idéia fixa de acompanhar os outros dois?

– Falou nisso o jantar inteiro.

– A que horas se deitou?

– Oito e meia. Esperou o senhor um pouco mas desistiu. Subiu muitíssimo aborrecida...

Augusto descansou o olhar na estante, agora abatido.

– Quando as aulas começarem ela vai perceber que exagerou um pouquinho. O colégio é muito bom, recebi milhares de recomendações...

Maria não disse mais nada e Débora considerou a hipótese de sair dali antes que os dois resolvessem ir deitar. Se fosse, como pretendia, até a cozinha, poderia ser flagrada e eles desconfiariam de que em algum momento ela os surpreendera conversando. Então Débora voltou às escadas e subiu lentamente para não fazer barulho nem chamar a atenção de ninguém.

Não estava com fome mesmo. A tentativa de comer alguma coisa era uma simples forma de distrair o tempo insone. Mas de volta à cama, Débora tinha muito no que pensar. Do que seu pai estaria falando? Por que parecia tão contente? Quem seria Patrícia? Porque ele a convidara para morar com ele? Débora tentou imaginar como seria a mulher geniosa capaz de tirar o sono de seu pai e sorriu. Augusto nunca se envolvera seriamente com ninguém desde que sua esposa Aparecida – mãe de Debby – falecera há quase onze anos.

Cinco flechas - capítulo 47

– Escute, Kawã, podemos ajudar – ofereceu um dos guerreiros.

– Não – berrou o pajé – não quero mais ninguém envolvido nisso. Voltem todos para as suas casas e se protejam! Buscarei minha mulher sozinho.

Mas nenhum dos homens se moveu. Todos estavam convictos de que deveriam fazer alguma coisa.

– Nós vamos ajudar sim – teimou Ubiraci.

– Não, papai! Se proteja! Essa briga é para eu travar sozinho. Não quero que mais ninguém se machuque por minha causa, por favor... – havia um desespero nítido na voz de Kawã. Estava perdendo tempo ali, tinha que salvar Ianaré o quanto antes. Já havia tentado entregar o cargo de pajé mas ninguém estava disposto a deixá-lo abrir mão do posto. Todos o reconheciam como um líder. Jamais permitiriam que fosse embora.

Kawã olhou para as pessoas paradas ao redor e não avistou a figura de Naomi. Pediu seu pai que fosse chamar o cacique pois somente Naomi conteria aquela multidão. Acompanhou com os olhos Ubiraci se afastando e pediu à Nadi.

– Mamãe, tome conta da Poji para mim. Ela está correndo um grande perigo. Não a deixe sumir de vista nem permita que vá procurar a Nana. Quando o cacique chegar eu...

Kawã ouviu um grito que fez seus músculos paralisarem. A voz era de Ubiraci. Não é possível, pensou, papai não pode...

– ELE ESTÁ MORTO, ELE ESTÁ MORTO!

Kawã correu em direção à oca do cacique. Entrou sem anunciar e parou diante do corpo inerte de Naomi, tombado sobre a rede com cinco flechas atravessadas pelo corpo. Débora chegou logo depois, não conseguia correr à velocidade de Kawã. Parou à porta, estarrecida.

– Não pode ser – Ubiraci repetia sem se conformar – não pode ser.

Kawã se sentiu impotente. A morte de Naomi havia destruído uma parte de sua força. Pensava em Ianaré, tinha medo de não encontrá-la a tempo. Não sabia o que faria se isso acontecesse. Precisava partir logo, mas o cacique estava morto agora, a tribo estava confusa, precisavam de sua orientação. Tinha o dever de ajudá-los e receio de perder a última chance de salvar Ianaré. Ajoelhou-se próximo ao morto.

– Nana, espere por mim...

Seu pai o ajudou a reerguer-se e o conduziu para fora da oca. Caminharam de volta ao pátio onde a tribo permanecia reunida.

– Naomi está morto – anunciou.

Houve um misto de assombro e comoção. Os anciãos correram até a oca do cacique e após uma vistoria no local saíram de lá cabisbaixos.

– Agora – disse Kawã aos conselheiros – temos que escolher o novo cacique. Nossa tribo está em guerra e precisamos de um líder com urgência.

Os conselheiros assentiram com a cabeça e se retiraram para a oca de um deles. Kawã sabia de sua responsabilidade pelos funerais. No entanto não conseguia parar de pensar no perigo que Ianaré ainda estaria correndo. Aproximou-se do ouvido de Ubiraci e disse baixinho:

– Isole a casa de Naomi. Não deixe ninguém se aproximar. Vou aproveitar a confusão para procurar a Nana.

Mas Kawã não se moveu. Avistou ao longe uma nuvem colorida formada por aves de todos os formatos e tamanhos que voavam em sua direção. A menor de todas pousou em seu ombro e parecia confidenciar em seu ouvido. O pajé caiu de joelhos.

– NÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃO!

Seu grito ressoou tão alto que calou os animais da floresta. As lágrimas desceram apressadas em seu rosto. Nadi apertou Apoji em um abraço choroso. Ubiraci ficou imóvel por um tempo então curvou-se diante do filho e fez menção de ajudá-lo a se levantar. Kawã não reagiu. Não tinha forças para isso. Permaneceu ajoelhado no chão, chorando desamparado. Débora acariciou-lhe os ombros. Não conseguia pensar em nada para dizer.

Os pássaros levantaram vôo no mesmo instante em que os conselheiros voltaram ao pátio. Arapuã anunciou:

– Decidimos por unanimidade que o novo cacique deve ser o guerreiro mais forte e corajoso que temos, que além tudo é conhecido por seu discernimento e justiça. Ele é filho de Apoema e responde pelo nome de Ubiraci.

A multidão se agitou novamente só que dessa vez de contentamento. Débora deu pulinhos de felicidade. Ubiraci foi reverenciado. A tribo havia aprovado a escolha. Mas Kawã não levantou. Estava soluçando ao ombro de Poji.

– Meu filho – disse o novo cacique – não é hora para lamentações. Naomi está morto e temos uma guerra para enfrentar. Você precisa se recompor.

Nadi ofereceu-lhe apoio e Kawã se ergueu, ainda que contra a vontade. Sabia que Ubiraci lamentava tanto como ele próprio mas como cacique tinha agora deveres a cumprir. Reconheceu que ele tinha razão. Precisavam agir logo ou teriam muito mais vidas para chorar.

Novamente Kawã entregou Apoji à sua mãe. Deu um beijo demorado na testa da menina e outro em Nadi e disse:

– Eu sei que virão atrás da minha pequena, mamãe! Eles querem me atingir, querem me forçar a entregar Débora. Só confio na senhora para protegê-la. Por favor, cuide de Poji para mim. Faça o que puder por ela. Eu preciso partir agora. Débora está completamente vulnerável.

– Sim, meu filho. Farei o que me pede. Vou proteger a pequena mesmo que seja com a minha vida.

Kawã observou Nadi por um instante e depois abaixou os olhos.

– Não me peça para escolher entre vocês duas. Quero Poji e Nadi juntas. A vida de uma não vai substituir a da outra.

– Agora já prometi, filho – falou ela com uma voz muito firme – uma palavra depois de dada nunca volta atrás.

Ubiraci estava reunido com os conselheiros e os demais homens da tribo para definir estratégias de combate. As mulheres se recolheram lentamente para as suas casas e levaram consigo as crianças.

Kawã acompanhou a mãe até a porta da oca e convocou todos os pássaros da floresta para vigiá-la.

– Eu dou à Nadi e Apoji o poder sobre todos vocês – disse dirigindo-se às aves – obedeçam a tudo o que elas pedirem desde que não se choque com a minha ordem maior de proteger a vida das duas.

Dito isso, o pajé saiu para a noite levando consigo somente um pequeno pássaro em seu ombro. Parou no local em que a reunião estava acontecendo.

terça-feira, 1 de janeiro de 2008

O homem por inteiro - continuação

Viveram segregados e felizes, compartilhando uma vida dividida, até que as meninas tornaram-se adolescentes.

Teria sido a mesma indiferença de sempre não fossem as escolhas afetivas das garotas. Aparecida enamorou-se a um rapaz íntegro, trabalhador e para o azar de todos, pobre. Seu nome era Augusto. Ele a amava perdidamente. Bueno apoiava a união desde que o rapaz investisse em uma profissão rentável.

Arminda era contra. Bradava aos quatro ventos que o rapaz era um golpista, um morto-de-fome, que nunca daria sua bênção à união, nunca permitiria que eles se casassem. Bueno interveio, tiveram uma briga barulhenta. Arminda ofereceu dinheiro ao tal pretendente e contratou garotas de programa para seduzi-lo.

Mas nada o intimidava. Quanto mais ela tentava separar mais o casal se unia. Prometeram um ao outro o amor eterno. Ele foi proibido de entrar na casa, Aparecida passou a fugir para encontrá-lo.

Um dia Arminda prendeu as filhas no quarto: Aparecida para que não fosse atrás do namorado e Patrícia para que não virasse menina-de-recados.

A situação começou a perder o controle. O marido exigiu que Arminda saísse de vez de casa, que deixasse as meninas em paz. Ela o acusou de não se importar com o futuro das filhas. Pela primeira vez se agrediram fisicamente. Foi um intensa gritaria. As quatros babás também foram mantidas presas. Não que as meninas ainda demandassem tamanho cuidado, mas a ligação afetiva delas com Patrícia e Aparecida era tão profunda que Bueno achou por bem mantê-las a serviço.

Dentro do quarto as meninas choravam. Bueno arrombou a porta. Ele estava exaltado como nunca o viram antes. A mãe bradava injúrias, alucinada.

Aparecida disse ao pai que não suportaria mais viver assim. Deu-lhe um beijo, às lágrimas, outro nas babás, demorou-se abraçando Patrícia e desceu as escadas correndo. A mãe quis impedir que partisse. Puxou-a de volta pelos cabelos. Patrícia quis ajudar e acabou levando um tapa no rosto. Aparecida urrou horrorizada. Prometera a si mesma que protegeria a irmã das loucuras da mãe. Bueno interferiu, conseguiu imobilizar a mulher. A babá ligou para a polícia.

Aparecida saiu de casa levando apenas a roupa do corpo. Era uma sensação estranha, de medo e liberdade. Iria embora para sempre, ser feliz com o homem que amava. Patrícia quis acompanhá-la. O pai não permitiu: era nova demais.

Arminda foi levada para a delegacia e ficou detida. Foi assistida por defensores públicos. Bueno fez questão de entregá-la à própria sorte. Queria que a esposa apodrecesse na prisão.

Mas não foi bem assim. Eram de uma família distinta na cidade. Foi um caso de repercussão pública. Arminda era réu primário, teve a pena reduzida por bom comportamento e não durou dois anos na cadeia.

Quando da sua liberdade, ninguém foi buscá-la. Ela não tinha dinheiro nem para o táxi nem para o ônibus. Ouviu desaforos no trajeto, a cidade inteira havia condenado sua atitude. Foi a pé para casa, andou por quase três horas seguidas.

E qual não foi sua surpresa ao entrar em casa, descobrir que Bueno não estava e se deparar com Patrícia na sala aos amassos com um homem, provavelmente seu namorado, aparentando mais pobreza que o pretendente de Aparecida. E negro, mais negro que a mãe de Arminda.

Para completar, Patrícia anunciou-se grávida. Foi a gota d'água! Arminda exigiu que algo fosse feito, queria impedir a filha de levar a gravidez adiante.

– O maior desgosto da minha vida seria ter um parente negro!

E insistiu na idéia:

– Para que trazer mais uma criança ao mundo? Filhos só dão desgosto! Vejam vocês duas! Estragaram minha felicidade com o pai de vocês! Nós éramos felizes até vocês nascerem! Ser mãe é um fardo mais pesado que a mulher pode carregar!

– Como ousa falar de maternidade? Sou órfã desde o dia em que me concebeu!

– Não vou admitir esse negro na minha casa! Ponha-se daqui para fora!

– A senhora é uma porca, preconceituosa! Vai voltar para a cadeia por crime de racismo!

– Ponha-se daqui para fora!

– Essa casa não é sua! É do meu pai!

– Não abrigamos mendigos!

– Escute aqui! Você não tem o direito...

– CHEGA! – gritou o namorado de Patrícia – JÁ OUVI O SUFICIENTE!

Patrícia observava o namorado com o coração comprimido, tinha medo do que ele poderia dizê-la, tinha medo de que ele perdesse a cabeça. As lágrimas deslizavam com a força de uma correnteza.

Patrícia tapou os ouvidos com as mãos. Seu namorado gesticulava indignado. Ela não queria ouvir. Sua mãe havia estragado tudo de novo. Patrícia recostou-se à parede. Não estava se sentindo muito bem. O canto dos olhos ficou escurecido, as imagens começaram a rodar. O rosto empalideceu-se. Estava prestes a desmaiar.

Patrícia tentou se concentrar no presente. Sentiu quando apertaram seu braço com violência. Tinha mera consciência de que sua mãe estava gritando e balançando seu corpo. Por mais que tentasse não conseguia reter as palavras que ela dizia. Então aquilo que Patrícia mais temia no mundo aconteceu: a dor mais alucinante que uma mulher pode sentir contraiu todo o seu abdômen. A contração em si não parecia nada diante da sensação de dor, de perda, que Patrícia experimentou. Caiu de joelhos no chão. Era como se seus músculos tivessem ganhado vida. Era como se suas costas estivessem sendo abertas a machadadas.

Quando Arminda entendeu o que estava acontecendo parou, por uns instantes, de falar e sorriu.

– Você não passa de uma menina mimada! Pelo menos a sua irmã tinha caráter! Você é uma fraca, uma tola, que não consegue sequer se defender na ausência do seu pai!

Era demais. O namorado de Patrícia acertou um soco no rosto de Arminda.

Com o nariz quebrado, a boca sangrando e dois dentes a menos, Arminda sorriu maliciosamente:

– Isso não muda nada! Patrícia continua sendo a mesma frágil idiota de sempre! – um brilho doentio cintilava em seus olhos – Sabe o que aconteceria se seu pai... – mas não pôde continuar a frase. Justo naquele instante Aparecida entrou apressada atraída pelos gritos. Estava acompanhada do homem pelo qual um dia fugira de casa. No anelar esquerdo brilhava uma aliança barata e simples. O ventre avantajado e redondo indicava uma gestação meses mais avançada: estava grávida também.

Aquela visita estava marcada há dois dias, desde que Patrícia ligara fazendo mistério a respeito de uma notícia muito boa. Seria também uma surpresa a Bueno. Pela primeira vez Aparecida estava retornando. Falava com o pai, às vezes, por telefone, mas nunca lhe dera o endereço de onde estava morando. Tinha muito receio de que a mãe, ao sair da prisão, fosse atrás dela. Não sabia a data de libertação de Arminda. Adorava pensar que a pena seria perpétua. Mas todas as expectativas relativas àquela visita se mostraram infrutíferas. Por um mau gosto do destino a data do encontro coincidiu com a liberdade da mãe, a quem Aparecida pretendia nunca mais encontrar.

O pai não estava em casa. Num canto Patrícia se contorcia e chorava com o namorado a ampará-la. No outro, Arminda gargalhava dementemente, o rosto completamente desfigurado.

– O que pensa que está fazendo? – Aparecida berrou enquanto acudia a irmã mais nova.

Aparecida chamou um táxi. Os homens ajudaram a carregar Patrícia até o carro. No instante em que o motorista bateu a porta do veículo Aparecida virou o pescoço para trás. Aquela imagem martelou para sempre em sua cabeça, a casa diminuindo à medida em que o veículo seguia em frente até desaparecer de vista quando o carro fez a primeira curva.

Patrícia foi imediatamente medicada, ficou quinze dias em observação no hospital. Quando de alta, Patrícia e o namorado se acomodaram na casa de Aparecida, que estava vivendo em um bairro excessivamente modesto de Casemiro de Abreu. A casa era minúscula, não muito confortável, móveis e eletrodomésticos de péssima qualidade. Mas Patrícia não se lembrava de algum dia ter visto a irmã mais feliz.

Augusto passava quase todo o dia fora. Tinha dois empregos e ainda fazia pequenos trabalhos aos finais de semana. Aparecida o ajudava comercializando peças de artesanato na feira do centro. Augusto levou o marido de Patrícia ao seu trabalho e conseguiu uma vaga para ele. Sempre que tinha tempo Augusto visitava os sebos da cidade. Sempre que podia comprava livros baratos para ele e o marido de Patrícia, por incentivo seu, estudarem à noite.

Inscreveram-se em um centro público de graduação à distância. Foram ambos aprovados em cursos distintos. Dispensaram os pequenos trabalhos em prol dos novos aprendizados. A situação financeira da casa não era nada boa. Os salários eram baixos, mal davam para cobrir os custos mensais.

Mas o horizonte das irmãs era promissor. Seus maridos eram os melhores alunos das respectivas disciplinas. A promoção para empregos mais rentáveis parecia uma mera questão de tempo...


****

Bueno nunca soube o que realmente acontecera naquele dia. Ao chegar em casa encontrou a esposa recém-libertada, o rosto inchado e sangrando, dizendo ter apanhado de um exaltado no caminho. Fez cara de inocente, perguntou pelas filhas, disse-lhe arrependida, com saudades da família, pronta para recomeçar. Bueno olhou-a desconfiado. Logo soube que a filha grávida não moraria mais ali.

Vasculhou a casa em busca de possíveis bilhetes. Patrícia não poderia ter partido sem se despedir dele. Interrogou os empregados em fila. Ninguém sabia explicar o que havia acontecido. O porteiro mencionou a rápida visita de Aparecida e Patrícia sendo carregada quase inconsciente até o táxi.

Bueno não conseguiu saber de mais nada. Desconfiou da versão da esposa. Arminda defendeu-se:

– Está bem, está bem! Se você insiste, contarei a verdade... Quando entrei na sala Patrícia e o namorado estavam discutindo. Pelo que entendi, ele insistia em não assumir a paternidade da criança. Eu, é claro, defendi minha filha. Mas aquele estúpido começou a se exaltar e me agrediu. Patrícia ficou nervosa, você sabe como os primeiros meses de gravidez são delicados... Então Aparecida chegou! Ela fez a cabeça de Patrícia para levá-la embora. Eu tentei falar com ela, Bueno. Eu clamei pelo perdão! Aparecida ainda estava muito magoada comigo... Com toda razão, é claro! Todos esses anos tenho sido uma péssima mãe. Não a culpo por isso. Mas eu tentei reparar meu erro! Fiz o que estava ao meu alcance... Tentei alertá-las. Elas não quiseram me ouvir!

Bueno não disse nada. Dispensou os empregados e passou a noite esperando algum telefonema que indicasse o paradeiro de suas filhas, que explicasse porque Patrícia havia partido sem se despedir. Por que teria feito isso com ele? Teria sido um pai tão mau assim?

No dia seguinte vagou pelas ruas em busca de notícias mas foi inútil. Era muito difícil rastrear um táxi comum numa cidade onde todos os táxis são iguais. Bueno espalhou cartazes pelas redondezas com fotos, telefones e recompensas mas ninguém foi capaz de oferecer uma pista sequer.

Bueno se convenceu de que Arminda falara a verdade e a aceitou de volta à casa. Mera hóspede. Ele nunca mais tocou seu corpo nem mesmo para um afago.

Com o tempo tornou-se um homem amargurado embora jamais tenha desistido de reencontrar as filhas.

À noite, na cama, ele a mulher rezavam em silêncio. Ele, para que as filhas estivessem bem. Ela, para que nunca mais voltassem. Arminda agradecia pela nova oportunidade de ser feliz. Tinha esperança de que na ausência das duas Bueno se esquecesse das buscas e voltasse a amá-la como antes.

O que Arminda não sabia (e daria para escrever um livro só com as coisas desconhecidas por ela) é que desde que as filhas haviam nascido o coração de Bueno fora repartido em três partes não idênticas. E para alcançá-lo nesse estágio seria necessário muito mais do que promessas de prazer e carinho intensos. Seria necessário um ato quase cirúrgico de reaproximar essas partes, que andavam embaralhadas.

Por que Bueno jamais voltaria a ser de Arminda como antes. Ele jamais voltaria a ser um homem por inteiro enquanto seu coração continuasse dividido.

Prólogo: Boatos apenas - parte II

CONTINUAÇÃO...

Ele [o Fogo] amou o Filho de Eva como jamais amou ninguém e cuidou dele, ensinando-o inclusive a arte de manejar o calor em proveito próprio. Mas conforme advertido pela Terra-Mãe, Eva era feita de elementos frágeis e também os filhos que gerara herdaram muitas de suas fraquezas, inclusive a de não suportar as grandes chamas, porque sua composição feita de barro, água e ar era extremamente sensível ao calor intenso.

Assim, o Fogo obrigou-se a controlar o próprio temperamento explosivo para poupar a saúde da família. E como Eva perdera os dois filhos do primeiro casamento – um morto e o outro banido – tiveram filhos atrás de filhos, porque estava sempre solícita à paixão incendiária do atual marido...

A Terra-Mãe nunca aprovou de fato aquela união porque suas diferenças pessoais com Eva não poderiam ser superadas através de um simples casamento – o que fora, aliás, um golpe muito baixo, principalmente porque Eva demonstrava uma melhor habilidade em controlar o gênio imprevisível do filho. Mas ficou um tanto aliviada com a aparente serenidade conquistada pelo Fogo, embora atribuísse aquela súbita mudança de comportamento exclusivamente à chegada da maturidade.

Estranhamente, nos quatro cantos do universo nasceram bonecos de barro como os filhos de Eva cujo pai visivelmente não era o Fogo (ele ficou uma fera quando descobriu). Chamavam-se herdeiros da Água e do Ar – e coincidentemente povoaram as terras doadas a um e ao outro.

Todos marcaram os descendentes à própria maneira a fim de resguardar as terras recebidas. Milhares de Eras se passaram até que um dia de muita alegria, na terra do Norte, o Fogo resolveu contar aos filhos de Eva um pouco de seu passado. Narrou orgulhosamente como obteve as terras em que viviam e confessou seu desejo reprimido de possuir todo o território agora repartido entre os irmãos.

Ora, a principal característica dos filhos de Eva era sem dúvida a mania de disputar trivialidades entre si. Eram de fato muitíssimo competitivos e buscavam reconhecimento por cada coisa simples que faziam, ansiando destaque por isso. Não se preocupavam muito com futilidades como benevolência e caráter porque afinal eram temas muito subjetivos, de difícil avaliação, de modo que não havia razão para perderem tempo com algo que não lhes rendesse evidência.

Assim, a narrativa do Fogo despertou interesse nos habitantes do Norte pelos antigos projetos do pai: resolveram secretamente presenteá-lo com o território de que tanto desejava.

Mas os tais Humanos eram feitos de porções iguais de terra, água e ar, portanto, possuidores de poder e força idênticos, de modo que fisicamente nenhum poderia reinar sobre o outro. Nesse caso, foi o domínio sobre o fogo que fez toda a diferença para os habitantes do Norte. Forjaram espadas e escudos, armas, canhões e conseguiram uma boa vantagem sobre os moradores do extremo-Oeste e os do Centro. Os do extremo-Leste foram rápidos em adquirir a técnica do manejo das chamas e conseguiram expulsar os invasores de suas terras. Foi o único lugar que escapou ao subjugo da dominação.

A sensação de guerra despertou os instintos primitivos do Fogo e esquecendo-se de que precisava da energia de seu irmão mais velho para sobreviver (um passado muito distante sobre o qual não se reflete sempre tende ao esquecimento) novamente atacou-o, só que dessa vez para roubar-lhe as terras. Grandes perdas sobrevieram a ambos os lados, mas o Ar, subjugado e enfraquecido, levou a pior.

A Água comoveu-se diante do destino cruel sob o qual o irmão sucumbia. Uniu suas forças às dele e enviou uma mensagem aos filhos de Eva de todos os lugares para se unirem em resistência à ocupação dos habitantes do norte. Não foi o suficiente.

O Fogo excedeu-se na busca ao poder e se esqueceu da frágil composição da própria família. Quando os primeiros filhos pereceram às chamas tampouco se deixou intimidar. A essa altura já tinha tantos herdeiros que perder alguns deles em prol de todas as terras do planeta parecia um preço justo. Então os habitantes do Norte perceberam o descaso com que o pai lhes tratava e se indignaram. O Fogo, sucumbindo à própria ambição, aspirou quase toda a energia do irmão transformando-se em uma enorme bola de chamas. O Ar perdeu os sentidos.

A Água chorou dias a fio. Sua tristeza era tamanha que várias nuvens-olhos carregadas de lágrimas brotaram do céu e cobriram toda a terra. Choveu incessantemente. Era um pranto tão singelo, tão sofrido, que até mesmo o Fogo se sensibilizou, suas chamas se enfraqueceram e o Ar recuperou a consciência. O Fogo foi banido do lar da Terra-Mãe e se exilou no céu, acima das nuvens-olhos, para não correr o risco de se extinguir para sempre. Foi o melhor para todos.

Durante o dia a bola de Fogo zelava e aquecia seus filhos à distância. À noite, como punição, se recolhia para pensar nos danos que provocou. É claro que o exílio não agradou nenhum pouco à Eva, que jurou fazer de tudo para ter seu companheiro de volta.

Foi o início dos boatos.

Em muitos cantos do planeta repetiu-se a história de que Eva fora vista, na calada da noite, remexendo algo suspeito no solo. Uns achavam que era veneno para matar a Terra-Mãe, outros, que era uma arma secreta para destruir o planeta, outros ainda, achavam que era tesouro roubado do paraíso. Não foi preciso decorrer muito tempo para que ninguém mais soubesse ao certo em que ponto do planeta teria sido enterrada a tal coisa. Alguns até fizeram mapas e cruzaram oceanos para procurarem o suposto tesouro. Não encontraram nada, mas ficaram ricos vendendo os mapas.

Havia também os sonhadores, desejando que Eva tivesse plantado uma semente para a paz. Alguns herdeiros, acreditando nisso, vestiram seus melhores ternos e foram às ruas dizer em altos brados que não tardaria para que a discórdia entre os filhos de Eva chegasse ao fim. Conquistaram muitos adeptos para a causa. Fizeram vigílias e procissões. Cantam à paz, rezaram nas praças mas nada adiantou. Não tinha importância: eles cultivavam a esperança e a esperança é uma semente que sempre se renova.

Os sonhadores acreditavam que a Terra-Mãe tinha se precavido às fraquezas dos filhos de Eva, a tal semente seria uma prova disso. Então quando a Terra-Mãe estivesse pronta, nasceria do mesmo povo três legítimos herdeiros dos filhos da Terra-Mãe, fadados a descobrir um segredo que poria de uma vez por todas um ponto final na discórdia entre os filhos e os filhos de seus filhos. Com o passar do tempo aquela vital certeza foi se esvaindo. Começaram a duvidar que a tal árvore tivesse realmente sido plantada – a Terra-Mãe fizera questão de espalhar aos quatro cantos do mundo que tudo não passava de invencionice de Eva – porque a Terra-Mãe ainda se ressentia pela nora, acreditava – precisava acreditar – que sua desgraça familiar havia sido provocada por Eva e seu charme fajuto.

Foram tantas recontagens, tantas adaptações, que a história virou um mero boato. Somente uma pessoa sabia a verdade mas ninguém sabia como chegar até ela. O único jeito seria esperar – talvez milhares de anos – até que alguém seguisse os passos de Eva e descobrisse o que estaria escondido no chão. Enquanto esperavam, as terras continuaram repartidas e marcadas para sempre pela co-existência (nem sempre pacífica) de três raças de filhos de Eva, que vez ou outra se lembravam do desejo do Fogo de dizimarem umas às outras...

04/01/2008 - 29/09/2008

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