sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Tarde da noite - Capítulo 2

Eram quase duas horas da manhã e o sono parecia ter esquecido de visitar Débora. Ela estava deitada, de olhos abertos e em silêncio, contemplando o teto do imenso quarto em que dormia. Embora soubesse que suas aulas iniciariam na manhã seguinte, Debby, como também era chamada, não conseguia afastar aquele turbilhão de pensamentos que agitavam a sua mente.

A questão era bem simples, embora para Débora parecesse a pior coisa do mundo. Ao final do ano letivo anterior, seu pai, Augusto Duarte de Assis – um homem muito rico, dono de uma rede de negócios e ações de diversas empresas – decidiu matriculá-la em uma nova escola, o Colégio de Aplicação Curumim Dourado, uma escola de renome, conhecida por formar os filhos de uma elite selecionada.

Ali, deitada, enquanto pensava em como seria a sua vida este ano, Débora sequer poderia imaginar o que realmente lhe aconteceria. Ela não fazia a mínima questão de disfarçar seu aborrecimento com seu pai por tê-la mudado de Colégio. Era ótima aluna, inteligente e esforçada mas Augusto havia chegado à conclusão de que chegara a hora de receber uma educação de primeira qualidade.

Todo o seu primário Debby havia estudado em uma escola pequena, de bairro, e crescido com as crianças da redondeza. Não que Debby não estivesse fascinada pela idéia de estudar no Curumim. Por muitas vezes ela mesma havia se imaginado atravessando os portões gradeados daquela escola que era linda, grande, bem equipada e oferecia a melhor educação do país. Ouvira muitas histórias fantásticas sobre o Colégio, porém as mesmas histórias que em outros momentos haviam despertado nela o desejo de estudar ali agora lhe pareciam totalmente sem-graça.

O problema?

Tudo que o Curumim tinha de fantástico também tinha de caro e isso significava que os dois grandes amigos de Debby, Maria Lúcia (a Malu) e Felipe, jamais teriam como pagar tal mensalidade.

Em outras palavras: às sete e meia de segunda-feira Débora sofreria toda a angústia de enfrentar sozinha a adaptação a uma escola totalmente nova e isso não lhe parecia muito agradável.

Embora jamais admitisse, Débora estava se sentindo desprotegida tendo que encarar um desafio sem seus amigos e basicamente este era o ponto de discordância da menina com seu pai. Malu e Felipe não eram exatamente pobres mas também suas famílias não eram ricas a ponto de poderem pagar uma mensalidade tão vultuosa.

Débora, que depois descobriu estar errada, acreditava que todos os colégios eram iguais e não queria estudar onde Maria Lúcia e Felipe não estivessem. Augusto, por sua vez, havia batido o martelo e contra todo e qualquer argumento apresentado pela filha manteve a decisão de transferí-la.

Um misto de expectativa e decepção atravessava o peito da menina e julgando pela insônia que estava sofrendo podia-se imaginar o quanto estava insegura em relação às aulas que assistiria.

Sentia-se derrotada. Questionava-se se deveria ter insistido mais, embora já soubesse de antemão que havia dedicado todas as suas forças em convencer Augusto a desistir da transferência. Fizera o que pôde. E sentiu uma pontada de raiva do pai por não tê-la escutado.


Por que tinha que ser tão cabeça-dura?

Augusto costumava levar a opinião da filha em grande consideração antes de tomar uma decisão que a afetasse porém desta vez não cedera. Não que ele fizesse as vontades da menina. É preciso esclarecer aqui que Débora não era uma menina mimada, Augusto sempre conversava com a filha e algumas decisões simples tomavam em conjunto mesmo, ou, pelo menos, isso funcionava para a grande maioria das coisas.

Não se sabe se era a proximidade da adolescência que estava deixando Débora um tanto “rebelde” ou se era Augusto que havia mudado. Mas o fato é que Augusto queria que Debby estudasse no Curumim Dourado e fez valer a sua vontade.

E era como jogar em um jogo perdido. Nada do que a menina dissesse ou fizesse não poderia alterar o resultado. Débora se sentia bastante infeliz para conseguir dormir. E para completar, Augusto, que mantinha o hábito de jantar todas as noites com a filha, não aparecera a tempo e esta noite ela jantara sozinha. Era a sua última chance de fazê-lo desistir...

O pai de Débora, atualmente um empresário muito bem-sucedido, não era rico de berço: melhorou a condição financeira por seus próprios méritos. Suas atenções estavam quase sempre voltadas para o trabalho e foi através dele que prosperou até juntar toda a fortuna de que atualmente dispunha. Augusto invariavelmente tinha um dia cheio de negócios a tratar e independente de suas obrigações profissionais fazia questão de dedicar as primeiras horas da noite à filha.

Débora já estava tão acostumada a recebê-lo em casa ao fim da tarde que vez ou outra quando Augusto se atrasava ela deixava a mesa aborrecida e seguia para o seu quarto sem falar com mais ninguém. Essa noite ela havia se deitado às oito e meia e já estava ficando entediada pela falta de sono. Ligou a televisão que ficava no vão central do armário embutido e ficou trocando os canais a esmo. Tentou assistir a alguma programação e logo desistiu porque não estava passando nada que valesse o esforço. Como já estava cansada de esperar pelo sono resolveu descer até a cozinha para comer alguma coisa ou quem sabe beber um copo de leite.

Debby saiu de seu quarto e desceu lentamente as longas escadas de mármore escuro, com corrimão de prata. Quando alcançou pouco mais que o meio da escada ouviu duas vozes vindas do andar de baixo. Sem fazer barulho chegou até a sala e reparou que as vozes, já familiares, estavam saindo da biblioteca:

– ... E foi por isso que eu fui até lá... – disse uma voz grave de homem – Ela não estava querendo aceitar... eu tinha que fazer algo...

– O Senhor agiu muito bem! – falou uma voz tenra, feminina.

– É, acho que foi – disse o homem hesitante.

– Então por que essa expressão preocupada?

– Fico me perguntando se fiz a coisa certa... Gostaria de tê-la trazido para cá... Eu gostaria de ter participado mais...

Débora espiou pelo vidro da porta de madeira que separava a sala da biblioteca. Lá dentro estavam Augusto e Maria. Augusto estava sentado em sua cadeira reclinável e Maria estava de pé, com o quadril apoiado na mesa, de frente para ele. A menina estranhou que os dois ainda estivessem acordados àquela hora da madrugada e até sentiu-se tentada entrar no escritório para falar com o pai, quem sabe insistir mais um pouco sobre a transferência... Mas desistiu logo da idéia, Augusto parecia agitado e Debby sabia que não era recomendado teimar com ele nessas circunstâncias.

A rotina de empresário às vezes era estressante. Invariavelmente Augusto enfrentava problemas nos negócios mas era raro ele permitir que isso alterasse seu humor em casa. Somente algo realmente grave o deixaria tão agitado.

Os dois ficaram em silêncio por alguns instantes, então Maria disse:

– Talvez ela ainda não esteja pronta para conviver com suas memórias, Augusto! O que não deixa de ser uma pena. Um pouco de companhia não faria mal a ninguém.

Augusto fez uma longa pausa em que parecia estar considerando a questão.

– Dê um tempo para ela amadurecer a idéia – continuou Maria – As coisas aconteceram rápido demais para todo mundo. É normal que ela esteja assustada, sem contar aquele probleminha com a mãe dela... Patrícia sempre foi muito independente, tá lembrado? Vir para esta casa, na cabeça dela, pode significar depender de você. Vai por mim, se ela foi capaz de enfrentar a mãe daquele jeito...

– Ainda assim eu gostaria de participar mais. Se Patrícia não parecesse tão obstinada! Augusto sorriu cheio de significação e Maria retribuiu ao afeto. – Isso me lembra alguém – disse ele – até parece que Patrícia é sua irmã!

Por um breve instante os olhos de Maria se perderam em algum lugar em suas lembranças e depois, ainda sorrindo, ela disse:

– Vão morar perto, pelo menos? – Não daqui. Ela fez questão de escolher o imóvel pessoalmente para evitar que eu cometesse excessos. Dá para acreditar?

– Típico! E a mobília?

– O que acha? Não consegui muita coisa. Disse que era assunto de mulher, se sentiria melhor se comprasse sozinha... Ela ameaçou pôr tudo à venda se eu me intrometesse na decoração. E não duvido que ela cumprisse a promessa, Maria. Estou pra ver uma mulher mais vigorosa. Acho que ganha até de você – disse Augusto sorrindo.

– E a menina? Quando o senhor pretende contá-la? Quanto antes melhor! – Maria tentou, sem sucesso, imprimir desinteresse à fala.

Ele suspirou profundamente.

– Resgatar isso tudo agora não vai ser fácil.

Augusto se mexeu desconfortavelmente na cadeira.

– Teremos tempo para isso... – respondeu evasivamente, e depois, como quem não queria prolongar o assunto perguntou – Debby ainda estava com a idéia fixa de acompanhar os outros dois?

– Falou nisso o jantar inteiro.

– A que horas se deitou?

– Oito e meia. Esperou o senhor um pouco mas desistiu. Subiu muitíssimo aborrecida...

Augusto descansou o olhar na estante, agora abatido.

– Quando as aulas começarem ela vai perceber que exagerou um pouquinho. O colégio é muito bom, recebi milhares de recomendações...

Maria não disse mais nada e Débora considerou a hipótese de sair dali antes que os dois resolvessem ir deitar. Se fosse, como pretendia, até a cozinha, poderia ser flagrada e eles desconfiariam de que em algum momento ela os surpreendera conversando. Então Débora voltou às escadas e subiu lentamente para não fazer barulho nem chamar a atenção de ninguém.

Não estava com fome mesmo. A tentativa de comer alguma coisa era uma simples forma de distrair o tempo insone. Mas de volta à cama, Débora tinha muito no que pensar. Do que seu pai estaria falando? Por que parecia tão contente? Quem seria Patrícia? Porque ele a convidara para morar com ele? Débora tentou imaginar como seria a mulher geniosa capaz de tirar o sono de seu pai e sorriu. Augusto nunca se envolvera seriamente com ninguém desde que sua esposa Aparecida – mãe de Debby – falecera há quase onze anos.
Comentários
3 Comentários

3 comentários :

Elisangela Guerra disse...

Tarde da noite é o nome do capítulo. Qual o nome do livro?
Gostei muito da história e fiquei curiosa pra saber quem é a tal Patrícia.

Ellen Regina disse...

Os filhos de Eva - o mistério do pomar

Anônimo disse...

Oi Mana Morena,

Adorei "Tarde da Noite". Você como sempre prendeu a minha atenção.

Estou ficando mais curiosa ainda!

Beijocas,

Sejam bem-vindos ao facetas!

................TODOS OS TEXTOS DESSE BLOG SÃO AUTORAIS............

Resolvi utilizar este espaço para divulgação de trechos de alguns trabalhos meus... Espero que vocês apreciem. Críticas e comentários serão muito bem-vindos, sobretudo críticas!

Se você já leu o texto acima não fique tímido: fique à vontade para comentar em outras postagens!